Em pleno século XXI, em um dos sistemas de saúde mais tecnologicamente avançados do mundo, em um país desenvolvido, deparamo-nos com um paradoxo inquietante: a persistência da febre reumática aguda (FRA) e sua principal sequela, a cardiopatia reumática crônica (CRC), entre crianças e adolescentes nos Estados Unidos. O estudo multicêntrico de Loizaga et al., publicado em 2021 no Journal of the American Heart Association, lança mão sobre essa realidade negligenciada. Ao revisar dados de quase mil casos em 22 centros pediátricos americanos ao longo de 10 anos (2008–2018), os autores rompem com a percepção histórica de que essa enfermidade é um problema exclusivo de países de baixa e média renda.
Essa suposição, por si só, revela uma das grandes armadilhas da epidemiologia moderna: confundir ausência de dados com ausência da doença. Tal como o poeta português Fernando Pessoa, que afirmava que “o mito é o nada que é tudo”, a cardiopatia reumática nos EUA tornou-se um “mito clínico” – tida como extinta, embora siga presente nas margens do sistema. A contribuição deste estudo é, portanto, dupla: científica e sociológica.
A FRA, como bem conhecida e já muito descrita na literatura, é uma doença autoimune pós-infecciosa desencadeada por uma infecção de garganta pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A (Streptococcus pyogenes). Embora a fisiopatologia seja bem compreendida, o risco de sua ocorrência depende fortemente do contexto social e econômico. Esse estudo demonstra que o grau de privação socioeconômica da comunidade (medido por um índice composto) está diretamente associado à gravidade da cardiopatia detectada.
E aqui reside uma das grandes virtudes do artigo: a capacidade de transcender o biologicismo e abordar a doença como marcador de desigualdade. Nos EUA, um país com acesso teórico universal à saúde infantil via programas como o Medicaid, ver a cardiopatia reumática afetar desproporcionalmente crianças negras, indígenas e de minorias linguísticas (ex: famílias que não falam inglês) nos obriga a olhar além da clínica – para as condições de moradia, acesso ao diagnóstico precoce, alfabetização em saúde e barreiras culturais ao tratamento.
Outro achado relevante foi que apenas 58% das crianças diagnosticadas com FRA ou CRC estavam em uso da profilaxia secundária com penicilina benzatina intramuscular – apesar de esta ser considerada padrão-ouro pela American Heart Association. A justificativa mais comum para o não uso foi a “preferência da família”, sugerindo que o desconforto da aplicação intramuscular frequentemente se sobrepõe ao entendimento do risco de recorrência. Essa informação ecoa com o conceito de health literacy, ou letramento em saúde, explorado por Nutbeam (2000), que aponta a importância de capacitar pacientes e cuidadores a compreenderem as implicações de suas escolhas terapêuticas.
A situação é análoga ao que ocorre no Brasil em regiões remotas da Amazônia, onde campanhas de profilaxia secundária esbarram em dificuldades logísticas e culturais – mas, nos EUA, essas barreiras são menos geográficas e mais sociais. O problema não é chegar até o paciente, mas sensibilizá-lo com base em confiança, linguagem e compreensão compartilhada da doença.
Historicamente, a FRA foi a principal causa de morte entre jovens de 5 a 20 anos nos EUA até o início do século XX. Com a revolução antibiótica e a melhoria das condições sanitárias, sua incidência caiu drasticamente. No entanto, como argumenta Loizaga et al., “a mortalidade capta apenas uma fração dos afetados e costuma ocorrer décadas após o diagnóstico”. O foco excessivo na mortalidade, sem vigilância ativa da morbidade, favorece a invisibilidade.
A cultura médica americana, altamente pautada em evidência e tecnologia, pode ter sido enganada pelo próprio sucesso. Como na clássica tragédia grega de Édipo, onde o rei tenta fugir de seu destino apenas para encontrá-lo no caminho que escolheu, a cardiopatia reumática parece retornar pelos flancos sociais esquecidos pelo sistema.
Este artigo é um chamado à ação. A cardiopatia reumática não é uma doença do passado. Ela é, hoje, o reflexo da desigualdade não resolvida. Ao identificar as lacunas no tratamento, diagnóstico e vigilância, Loizaga et al. oferecem mais do que dados – oferecem um espelho. Resta saber se os tomadores de decisão terão coragem de olhar para ele e entusiasmo de abrir as cortinas numéricas, como o IDH, e analisar as próprias mazelas sociais em seu entorno. Assim, o tal “mito clínico” seria atenuado, e com as palavras do poeta “Assim a lenda se escorre. A entrar na realidade, e a fecundá-la decorre”.
Apontamentos Finais:
Literatura Sugerida:
1 – DE LOIZAGA, SR et al. Doença cardíaca reumática nos Estados Unidos: Esquecida, mas não extinta: Resultados de uma revisão multicêntrica de 10 anos. Journal of the American Heart Association , v. 10, n. 16, p. e020992, 2021.
Click Valvar Academy#652 – A Febre Reumática nos EUA
Confira o artigo completo
| Cookie | Duração | Descrição |
|---|---|---|
| cookielawinfo-checkbox-analytics | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics". |
| cookielawinfo-checkbox-functional | 11 months | The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional". |
| cookielawinfo-checkbox-necessary | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary". |
| cookielawinfo-checkbox-others | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other. |
| cookielawinfo-checkbox-performance | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance". |
| viewed_cookie_policy | 11 months | The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data. |
Privacidade e cookies: Este site usa cookies. Ao continuar no site você concorda com o seu uso. Para saber mais, inclusive como controlar cookies, veja aqui: Política de cookie
As configurações de cookies deste site estão definidas para "permitir cookies" para oferecer a melhor experiência de navegação possível. Se você continuar a usar este site sem alterar as configurações de cookies ou clicar em "Aceitar" abaixo, estará concordando com isso.