Quando Machado de Assis escreveu Dom Casmurro, talvez não imaginasse que Bentinho — aquele rapaz introspectivo e febril, consumido por ciúmes e pela dúvida — seria uma metáfora perfeita para a febre reumática. Há algo de silencioso e traiçoeiro tanto no ciúme de Bentinho quanto na doença que corrói o coração sem alarde. Ambos agem às escondidas, latentes, até que o estrago se revela tarde demais.
É sob essa lente machadiana — a da sutileza e da tragédia discreta — que podemos ler o recente estudo publicado no New England Journal of Medicine em 2022, intitulado “Secondary Antibiotic Prophylaxis for Latent Rheumatic Heart Disease”. O ensaio clínico GOAL, conduzido em Uganda, representa uma das investigações mais sólidas sobre a profilaxia secundária com penicilina benzatina em crianças e adolescentes com doença reumática cardíaca latente — uma fase em que o coração já guarda marcas microscópicas da agressão autoimune, mas o corpo ainda parece saudável.
Foram 102 mil jovens examinados por ecocardiograma, dos quais 818 participaram efetivamente do estudo. Divididos entre receber penicilina benzatina mensalmente ou nenhum tratamento, os resultados foram contundentes: apenas 0,8% dos tratados tiveram progressão da doença, contra 8,2% no grupo controle — uma redução relativa de 90% (P < 0,001). Em termos práticos, seria necessário tratar 13 crianças para evitar que uma evoluísse para doença reumática manifesta. Efeito expressivo, seguro e reprodutível: apenas um caso de anafilaxia leve em mais de dez mil aplicações.
Os números impressionam, mas é no que eles evocam que reside o verdadeiro impacto. Em regiões de pobreza, onde o acesso ao diagnóstico é tardio e a cirurgia cardíaca é um sonho distante, a penicilina reaparece como símbolo de equidade em saúde — uma arma antiga, mas ainda insubstituível. O estudo revela que, quando aplicada precocemente, ela pode transformar o destino de corações destinados à insuficiência e à morte precoce.
Mas o ensaio também lança luz sobre dilemas contemporâneos. Para detectar um caso elegível, foi preciso examinar mais de 100 crianças — o que coloca em xeque a viabilidade de rastreamento universal em países de renda média e baixa. O desafio, portanto, é de política pública: como equilibrar custo, acesso e impacto populacional?
No Brasil, onde a febre reumática ainda é lembrança viva nas periferias, o estudo serve de espelho. Assim como Bentinho cresceu num ambiente de promessas e ausências, muitos dos nossos pacientes vivem entre a expectativa do cuidado e o abandono das estruturas de saúde. A profilaxia reumática é uma história de amor interrompido: entre o médico que prescreve e o paciente que, por falta de transporte, medo da dor ou desabastecimento, não volta para a próxima dose.
O GOAL trial mostrou adesão exemplar — mais de 99% das injeções aplicadas dentro do prazo —, mas essa excelência reflete um cenário de pesquisa controlado, não o cotidiano de uma unidade básica. No mundo real, onde a penicilina pode faltar e a dor da agulha pesa mais que a fé no tratamento, o desafio é menos farmacológico e mais sociocultural. É preciso integrar escolas, agentes comunitários e campanhas educativas, resgatando o papel civilizatório da saúde pública: aquele que o SUS entende tão bem.
A beleza deste estudo está em resgatar a lógica do simples que salva. Numa era de cardiologia intervencionista e terapias genéticas, lembrar que uma injeção mensal de penicilina pode evitar uma valvopatia crônica é quase poético. É medicina essencial — e, portanto, revolucionária.
Machado de Assis dizia que “o coração é um livro que poucos sabem ler”. A febre reumática é uma dessas páginas mal compreendidas: silenciosa, progressiva, frequentemente ignorada até o ponto de ruptura. O estudo de Beaton e colaboradores ensina que, talvez, o segredo esteja em ler o coração antes que ele fale.
Se Bentinho tivesse tido um ecocardiograma, talvez soubesse que o verdadeiro ciúme estava dentro de si — e não em Capitu. Assim também a medicina aprende, tardiamente, que a tragédia da febre reumática começa antes do sopro, antes do cansaço, antes da febre. O que se propõe agora, com a profilaxia precoce, é reescrever essa narrativa — dar ao coração o final que Machado negou ao seu personagem: um final de paz, não de suspeita.
Apontamentos finais
Literatura Sugerida:
1 – BEATON, Andrea; OKELLO, Emmy; RWEBEMBERA, Joselyn; et al. Secondary antibiotic prophylaxis for latent rheumatic heart disease. The New England Journal of Medicine, Boston, v. 386, n. 3, p. 230-240, Jan. 2022. DOI: 10.1056/NEJMoa2102074
Click Valvar Academy#688 – Profilaxia Secundária da Febre Reumática
Confira o artigo completo
| Cookie | Duração | Descrição |
|---|---|---|
| cookielawinfo-checkbox-analytics | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics". |
| cookielawinfo-checkbox-functional | 11 months | The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional". |
| cookielawinfo-checkbox-necessary | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary". |
| cookielawinfo-checkbox-others | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other. |
| cookielawinfo-checkbox-performance | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance". |
| viewed_cookie_policy | 11 months | The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data. |
Privacidade e cookies: Este site usa cookies. Ao continuar no site você concorda com o seu uso. Para saber mais, inclusive como controlar cookies, veja aqui: Política de cookie
As configurações de cookies deste site estão definidas para "permitir cookies" para oferecer a melhor experiência de navegação possível. Se você continuar a usar este site sem alterar as configurações de cookies ou clicar em "Aceitar" abaixo, estará concordando com isso.