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Remodelamento no Barlow

Além da Regurgitação Mitral

A doença de Barlow (DB) representa o fenótipo mais exuberante da valvopatia mitral degenerativa. Caracteriza-se por prolapso multisegemtentar ou bivalvular, folhetos espessos e redundantes, alongamento cordal e disfunção do anel, frequentemente associada à disjunção do anel mitral (MAD). Embora a progressão para regurgitação mitral (RM) significativa seja um evento conhecido, estudos recentes têm sugerido que a DB pode cursar com remodelamento precoce das câmaras esquerdas, por vezes desproporcionais ao grau de RM.

Meucci e colaboradores conduziram uma coorte histórica bicêntrica com 231 pacientes portadores de DB e RM não significativa (mínima, leve, ou leve a moderada), comparados a 231 controles pareados por idade, sexo e fatores de risco cardiovasculares.
A hipertrofia excêntrica do ventrículo esquerdo (eLVH) foi definida por índice de massa ventricular esquerda (LVMi) elevado e espessura relativa de parede < 0,42. A disfunção mecânica foi caracterizada por LVGLS < 17,5% e strain do átrio esquerdo (AE) < 24%, parâmetros extraídos segundo valores de normalidade atuais. O strain atrial foi calculado no modo R–R a partir de seis segmentos (Figura 1).

Mesmo sem RM relevante, os portadores de DB apresentaram câmaras esquerdas maiores que os controles. O LVEDVi (61 ± 12 vs 51 ± 9 mL/m²), LVESVi (24 ± 6 vs 20 ± 5 mL/m²) e os volumes máximos e mínimos do AE (LAVi max 35 ± 12 vs 25 ± 8 mL/m²; LAVi min 17 ± 9 vs 11 ± 5 mL/m²) foram significativamente mais altos (todos P < 0,001).

O LVMi também se mostrou aumentado [93 (80–109) vs 81 (72–93) g/m²], resultando em maior prevalência de eLVH (29% vs 7%; P < 0,001). Apesar disso, tanto a fração de ejeção (≈ 61%) quanto o LVGLS (≈ 20%) permaneceram semelhantes entre os grupos, indicando preservação da função sistólica global. O AE mostrou-se mais esferoidal, refletindo um padrão de remodelamento atrial precoce.

No domínio funcional, o strain de reservatório do AE estava reduzido nos pacientes com DB (31,2 ± 8,0% vs 34,4 ± 7,0%; P < 0,001), enquanto o LVGLS manteve-se estável. A disfunção atrial esquerda (strain < 24%) foi significativamente mais frequente em DB do que nos controles (20,4% vs 5,7%).
A Figura 1 do estudo ilustra bem esse padrão: incremento de LVMi e volumes ventriculares, aumento do LAVi e redução do strain atrial, com alterações mais pronunciadas à medida que a RM progride, mesmo dentro do espectro considerado “não significativo”.

Figura 1. Remodelamento precoce na Doença de Barlow.
 Comparação entre controles e pacientes com doença de Barlow (DB) segundo o grau de regurgitação mitral (RM). Observa-se aumento progressivo do LVMi, LVEDVi e LAVi máx, além de redução do strain de reservatório atrial esquerdo nas fases iniciais da doença. (Adaptado de Meucci et al., 2024.)

 

No acompanhamento médio de 37 meses dos 170 pacientes com exames ecocardiográficos seriados, 30% evoluíram para RM moderada a importante, e 20 foram encaminhados para intervenção mitral.

Nos modelos de regressão de Cox ajustados, os preditores independentes de progressão da RM foram: idade (HR 1,041 por ano), hipertrofia excêntrica do ventrículo esquerdo (eLVH) (HR 2,25; IC95% 1,20–4,24), RM leve a moderada na linha de base (HR 2,31; IC95% 1,23–4,36) e MAD (HR 1,91; IC95% 1,06–3,45). Por outro lado, métricas de função sistólica global — como a fração de ejeção do VE (FEVE) e o LVGLS — não se associaram à progressão da RM.

A Figura 2 ilustra um caso típico de doença de Barlow com RM leve, discreta dilatação de VE e AE, presença de eLVH e strain de reservatório atrial esquerdo reduzido, além de MAD evidente — um fenótipo que, conforme os modelos propostos, reúne marcadores associados à evolução desfavorável.

Figura 2. Remodelamento e progressão da regurgitação mitral na Doença de Barlow.
Comparação ecocardiográfica entre pacientes com Doença de Barlow (DB) e controles pareados, evidenciando remodelamento precoce das câmaras esquerdas e redução do strain atrial mesmo na ausência de RM significativa. Durante o seguimento, idade avançada, hipertrofia excêntrica do VE (eLVH), RM leve a moderada e disjunção do anel mitral (MAD) foram preditores independentes de progressão da RM. Adaptado de Meucci et al., 2024.

Em uma coorte ampla de pacientes com prolapso da valva mitral (PVM) e RM < moderada, Yang e cols demonstraram que o remodelamento das câmaras esquerdas — com aumento dos volumes de VE e AE e elevação do LVMi — já se manifesta mesmo nas fases de RM discreta, em contraste com controles pareados. Esses achados sugerem a presença de processos miocárdicos e atriais intrínsecos, concomitantes ao mecanismo puramente “volumétrico” da regurgitação mitral.

No espectro específico da doença de Barlow (DB), a dinâmica do anel mitral e a disjunção do anel mitral (MAD) assumem papel central. Em estudo longitudinal, Hiemstra e cols descreveram a progressão da disfunção anular para RM grave, reforçando a MAD como marcador anatômico-funcional de instabilidade do aparelho mitral e de estresse mecânico sobre os folhetos, com repercussões estruturais ventriculares e atriais.

Mesmo com função sistólica global preservada, métricas avançadas de função atrial apresentam valor prognóstico: em pacientes com RM primária submetidos à plastia, o strain de reservatório atrial pré-operatório associa-se de forma independente à mortalidade, com valor incremental sobre o tamanho do AE e outras variáveis convencionais.

Nesse contexto, a redução do strain atrial esquerdo observada em portadores de DB sem RM significativa pode representar um sinal precoce de miopatia atrial intrínseca ou o impacto de uma mecânica anular paradoxal típica da doença — mecanismos plausíveis e possivelmente complementares.

Do ponto de vista fisiopatológico, a DB se comporta tanto como valvopatia “de folheto” quanto como síndrome valvo-miocárdica:

  1. A MAD altera a cinemática do anel, reduz a configuração em “saddle shape” e concentra tensões no aparelho mitral, favorecendo RM e remodelamento progressivo.
  2. A herança poligênica da DB, com variantes em genes relacionados a cardiomiopatias, pode predispor a respostas miocárdicas mal adaptativas mesmo sob cargas hemodinâmicas discretas.
  3. Estudos de ressonância magnética cardíaca (RMC) documentam fibrose de substituição na parede inferolateral basal em parcela relevante dos pacientes, independentemente do grau de RM — um substrato potencial para remodelamento e arritmias ventriculares.

Em termos de fenótipo funcional, chama atenção que, enquanto o LVGLS se mantém globalmente normal nas fases iniciais, o strain do AE já se encontra reduzido — padrão que sugere maior vulnerabilidade atrial às alterações do acoplamento atrioventricular e da dinâmica anular. Esse comportamento é coerente com o valor prognóstico do strain atrial em RM primária e reforça seu papel como marcador de dano subclínico.

Do ponto de vista clínico, destacam-se três implicações práticas:

  1. Hipertrofia excêntrica (eLVH) em pacientes com DB, mesmo sem RM significativa, identifica um subgrupo de risco aumentado (≈2 vezes maior) para progressão da regurgitação, justificando vigilância ecocardiográfica mais estreita, com quantificação seriada de volumes e massa do VE, além de LAVi e strain do AE.
  2. A documentação da MAD deve ser explícita e quantitativa (≥ 5 mm, conforme o estudo), dado seu valor prognóstico independente. Por sua associação com dinâmica anular paradoxal, a presença de MAD pode antecipar instabilidade do aparato mitral e justificar intervalos de follow-up mais curtos, especialmente quando coexiste com eLVH.
  3. A interpretação funcional do AE deve ir além do tamanho: a redução do strain de reservatório, mesmo com LAVi apenas moderadamente elevado, sinaliza perda de complacência e desacoplamento atrioventricular, predizendo eventos cirúrgicos e mortalidade em RM primária. Quando disponível, a integração com RMC para pesquisa de fibrose de substituição pode aprimorar a estratificação de risco estrutural e arrítmico, sobretudo na região inferolateral basal.

No plano prático, um algoritmo de acompanhamento que combine:
(a) avaliação semestral ou anual do anel mitral, com busca ativa de MAD;
(b) quantificação sistemática de LVMi e volumes de VE e AE;
(c) mensuração seriada do strain de reservatório atrial; e
(d) vigilância para arritmias ventriculares — especialmente na presença de fibrose inferolateral ou MAD pronunciada — mostra-se coerente com a fisiopatologia e os preditores de progressão descritos.

Em portadores de eLVH e/ou MAD, é razoável encurtar os intervalos de reavaliação e considerar encaminhamento precoce a centros especializados em reparo valvar, dada a maior probabilidade de evolução da RM observada nos modelos multivariados. Em paralelo, a manutenção de LVGLS normal não deve ser interpretada como sinal de estabilidade quando há queda do strain atrial, pois este constitui marcador sensível de dano hemodinâmico e miopático, com implicações prognósticas consolidadas.

Literatura Sugerida: 

1 – Meucci MC, Mantegazza V, Wu HW, Van Wijngaarden AL, Garlaschè A, Tamborini G, et al. Structural and functional abnormalities of left-sided cardiac chambers in Barlow’s disease without significant mitral regurgitation. Eur Heart J – Cardiovasc Imaging. 2024 Aug 26;25(9):1296–305.

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