fbpx

INSUFICIÊNCIA MITRAL LEVE E FIBRILAÇÃO ATRIAL

O PLOT TWIST QUE NINGUÉM ESPERAVA

Que a insuficiência mitral (IM) é campeã entre as valvopatias nós já sabemos há um bom tempo. Se você é ecocardiografista, cardiologista clínico ou mesmo médico de outra especialista, tenho certeza que você dá relevância à insuficiência mitral quando ela é moderada ou grave, afinal, sabemos a correlação clara entre estes estágios e o risco de fibrilação atrial (FA), insuficiência cardíaca e até mortalidade. Porém, seja sincero: você não costuma dar importância a aquela IM leve ou traço de refluxo que aparece no ecocardiograma e tende a interpretar esse achado como “sem importância clínica”, não é mesmo? Será que você tem razão ou tem subestimado esse pequeno refluxo mitral caracterizando-o como inocente? Foi exatamente isso que um grupo dinamarquês resolveu investigar no Copenhagen City Heart Study.

O Objetivo do estudo foi avaliar se até mesmo regurgitações discretas (quantificadas pela razão entre área do jato mitral e área do átrio esquerdo – MR/LA ratio) estão associadas ao maior risco de desenvolver FA na população geral. Veja abaixo como esta medida é obtida:

Para tal avaliação, foi recrutado uma população de 4.466 participantes do CCHS, média de 57 anos, sem FA prévia. Todos realizaram ecocardiograma transtorácico padronizado através de um seguimento clínico com mediana de 5,3 anos. O desfecho primário analisado foi a incidência de FA em pacientes com IM leve dentro do período descrito. Dos 4466 participantes, 48% dos pacientes tinham IM (sendo que 39% com traços ou leve) e 198 pacientes (4,9%) desenvolveram FA durante o follow-up.

Para entender melhor, dê uma analisada na figura abaixo retirada diretamente do artigo:

Porque isso acontece? O raciocínio é o seguinte: a IM gera sobrecarga de volume no átrio esquerdo (AE) que, mesmo em grau discreto, ao longo dos anos, isso pode causar estiramento da parede atrial (mecânico), ativação de canais iônicos sensíveis ao estiramento desencadeando descargas rápidas vindas das veias pulmonares e estímulo de mediadores inflamatórios e fibrose atrial (via espécies reativas de oxigênio, catecolaminas, citocinas). Ou seja: temos substrato arrítmico + gatilho = FA. 

Mas então, segundo este estudo, posso afirmar que existe uma relação clara entre IM e FA? Depende! (spoiler: analise a figura abaixo) De fato houve interconexão entre IM e FA mas apenas nos< 73 anos! Cada aumento de 5% no MR/LA ratio elevou o risco de FA em 14% (HR 1,14; p=0,001) e mesmo quando excluíram moderada/grave e AE dilatado, a associação se manteve (HR 1,35; p=0,005).

Mas porque será que nos>73 anos, a IM não se associou a maior risco de FA? Bom, tenho algumas hipóteses para isso:

 

  • Tempo para o efeito se manifestar

Nos mais jovens, a IM leve ainda tem “tempo de estrada” para gerar sobrecarga de volume, remodelamento atrial e substrato arrítmico. Já nos idosos, provavelmente essa IM leve já está presente há muitos anos e estabilizou sua repercussão, sem grande impacto adicional. Porque isso ocorre? Com o envelhecimento, o AE sofre uma cascata própria de remodelamento: fibrose atrial difusa independente da IM, alteração de conexões elétricas intercelulares (gap junctions), gerando maior heterogeneidade de condução e deposição de colágeno, apoptose de cardiomiócitos, estresse oxidativo crônico. Ou seja, tudo isso “pré-dispondo” à FA, mesmo sem regurgitação.

  1. Outros fatores sobrepõem o risco

Acima dos 73, geralmente o risco de FA tende a ser mais alto por outras causas (hipertensão de longa data, fibrose atrial, insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada, apneia do sono, disfunção diastólica: todos muito prevalentes nessa faixa etária) do que de fato pelo efeito da IM. Em outras palavras: o “peso” da IM leve no risco global de FA fica pequeno frente ao envelhecimento do átrio e às múltiplas doenças coexistentes que entram como “culpadas” da FA mais no topo da lista do que de fato a IM.

  1. Seleção natural

É possível que os idosos com IM leve e maior risco de FA já tenham desenvolvido a arritmia antes (e por isso não entraram no estudo, já que excluíram quem tinha FA prévia).

Pensando na implicação prática disso tudo que conversamos, usaremos a partir de agora o método MR/LA ratio como padrão-ouro para graduar IM? Não! Seguimos utilizando os critérios da última diretriz brasileira sobre o tema (SBC 2021), os quais também foram reforçados nas atualizações deste ano na diretriz de valvopatias ESC 2025, utilizando os seguintes parâmetros ecocardiográficos como prioridade para graduar a IM:

– PISA (EROA + VR)   método padrão-ouro.

– Fração regurgitante >50%  IM grave.

– Vena contracta >0,7 cm (2D) ou >0,40 cm2 (3D)  IM grave.

– Fluxo venoso pulmonar com reversão sistólica  marcador forte de gravidade.

 

Mas então, o que muda na prática sabermos a MR/LA ratio do paciente com IM leve?

Bom, considerando que o MR/LA ratio é um marcador simples e independente de risco, mesmo em AE normal e sem IM moderada/grave, podemos dizer que o que este artigo muda nossa prática clínica é baseado em 4 pilares:

  1. Melhora na estratificação de risco

Em pacientes jovens/meia-idade, o MR/LA ratio pode ser usado como “alerta precoce” e aquele ecocardiograma que antes você assinaria como “IM leve sem relevância” pode merecer uma observação mais próxima, principalmente se o paciente tem outras fatores associados que aumentam o risco de FA. Por exemplo: paciente jovem que ingere muita cafeína, já possui extrassístoles frequentes no holter e ingere álcool em grande quantidade com frequência. Imagine que esse paciente citado tenha uma IM leve com o MR/LA ratio alterado: entende que neste caso acendemos mais ainda nosso alerta precoce para desenvolvimento de FA?

  1. Vigilância de ritmo

Pacientes <73 anos com IM leve+ MR/LA ratio mais alto talvez valha indicar monitorização rítmica mais precoce (Holter, loop recorder, etc.). Lembre-se que detectar FA cedo = oportunidade  de anticoagulação e prevenção de AVC.

  1. Atenção ao AE ainda normal

O estudo mostrou que a associação com FA ocorre antes da dilatação atrial! Isso sugere que o remodelamento elétrico precede o anatômico. Ou seja, o MR/LA ratio ajuda a flagrar esse momento! Entendeu a importância desta ferramenta no dia a dia?

  1. Pesquisa futura/ guideline em potencial

Ainda não virou critério de diretriz (nem ESC 2025 trouxe cortes para MR/LA ratio) mas se mais estudos confirmarem, quem sabe este parâmetro entra também como critério adicional de estratificação num futuro breve, não é mesmo?

Resumindo tudo isso que conversamos:

Na sua prática médica, se você encontrar um paciente com IM leve e <73 anos: anote o MR/LA ratio no laudo! Se o valor estiver no limite alto, pense em acompanhar AE e ritmo mais de perto, pois isso pode ser o primeiro sinal de alerta antes de o paciente “ganhar” uma FA. Portanto, a Insuficiência mitral leve e fibrilação atrial estão mais do que nunca conectadas. Por esse plot twist você não esperava né?

Literatura Sugerida: 

1 – Yafasov M, Olsen FJ, Shabib A, Skaarup KG, Lassen MCH, Johansen ND, Jensen MT, Jensen GB, Schnohr P, M0gelvang R, Biering-S0rensen T. Even mild mitral regurgitation is associated with incident atrial fibrillation in the general population. Eur Heart J Cardiovasc lmaging. 2024;25(5):579-586. 


Compartilhe esta postagem

Privacidade e cookies: Este site usa cookies. Ao continuar no site você concorda com o seu uso. Para saber mais, inclusive como controlar cookies, veja aqui: Política de cookie

As configurações de cookies deste site estão definidas para "permitir cookies" para oferecer a melhor experiência de navegação possível. Se você continuar a usar este site sem alterar as configurações de cookies ou clicar em "Aceitar" abaixo, estará concordando com isso.

Fechar