Em seu poema “A máquina do Mundo” – de sua obra “Claro Enigma”, Carlos Drummond de Andrade reiterou em versos a vivência observacional do mundo, o confronto entre a ciência e a vida humana, a liberdade e a responsabilidade. Não obstante, entre tantas dicotomias do poeta modernista, caberia abordar no vigente contexto, a relutância que se há em afirmações concretas para o combate e acompanhamento da Febre Reumática (FR) e a Doença Cardíaca Reumática (DRC). A falta de interesse nas regiões endêmicas, a ausência de antibióticos e a inexistência de vacinas são fatores já retratados e de grande urgência, mas de branda expressão.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a febre reumática é responsável por 300 mil mortes no mundo por ano em países de baixa renda. Por esse motivo, em 2018 os estados-membros da OMS adotaram uma resolução global solicitando dados de alta qualidade para a melhor compreensão da sua epidemiologia a fim de se ponderar fatores e medidas resolutivas internacionais para a erradicação do grave problema. Contudo, não há dados globalmente representativos sobre populações contemporâneas que vivem com DCR, haja vista que a maioria dos estudos sobre DCR incluiu um pequeno número de pacientes, foram retrospectivos ou restritos a pequenas regiões geográficas ou grupos étnicos de alto risco, perpetuando ainda mais tal imbróglio.
Nesse sentido, o artigo publicado pela Associação Americana de Medicina intitulado “Mortalidade e Morbidade em adultos com Doença Cardíaca Reumática” aborda com grande propriedade os principais estigmas da DRC na atualidade, sendo -quiçá- um dos poucos subsídios disponíveis. À luz desse cenário, o estudo prospectivo multicêntrico publicado recentemente na JAMA por Karthikeyan et al., envolvendo 13.696 pacientes de 24 países endêmicos, fornece uma visão abrangente e atualizada da morbimortalidade dessa condição, oferecendo dados fundamentais para orientar políticas de saúde e práticas clínicas.
Os resultados revelam que a mortalidade geral entre pacientes com DCR clínica é de aproximadamente 15% em três anos, com uma taxa anual de 4,7%. A principal causa de óbito foi cardiovascular, predominantemente insuficiência cardíaca (IC) ou morte súbita, demonstrando que as consequências hemodinâmicas das lesões valvares estruturais são o determinante central da mortalidade. A baixa frequência de procedimentos corretivos, como cirurgia valvar (4,4%) e valvuloplastia mitral (1,7%), destaca um gargalo crítico: apesar de a maioria dos pacientes apresentar doença sintomática, o acesso a intervenções potencialmente salvadoras permanece limitado.
O estudo enfatiza que a gravidade da doença valvar é o principal preditor de mortalidade. Pacientes com IC, hipertensão pulmonar e fibrilação atrial apresentaram risco significativamente maior de morte. Por outro lado, a realização de cirurgia valvar ou valvuloplastia durante o acompanhamento demonstrou associação robusta com menor mortalidade, sugerindo que o manejo intervencionista adequado é a estratégia mais eficaz para reduzir óbitos em pacientes com DCR avançada. Essas descobertas reforçam a necessidade urgente de expandir a disponibilidade e o acesso a serviços cirúrgicos e intervencionistas, complementando os esforços atuais baseados em profilaxia antibiótica e anticoagulação.
Outra constatação relevante refere-se às disparidades entre grupos de renda. Pacientes de países de baixa renda apresentaram mortalidade mais elevada, mesmo após ajustes para fatores individuais, evidenciando que a infraestrutura de saúde e o acesso a tratamentos definitivos influenciam diretamente os desfechos. Em contrapartida, em países de renda média-alta, apesar da menor prevalência de lesões valvares graves, os pacientes tendem a ser mais velhos e apresentar maior carga de comorbidades cardiovasculares, o que pode aumentar o risco de mortalidade não relacionada à DCR. Esses achados sublinham a complexidade da DCR como doença socioeconômica e clínica, reforçando a necessidade de estratégias contextualmente adaptadas.
O estudo também esclarece que eventos como AVC, endocardite infecciosa e recidiva de febre reumática são relativamente raros, o que tem implicações importantes para priorização de recursos. A baixa incidência de AVC, por exemplo, questiona a necessidade de investimentos caros em monitoramento intensivo de anticoagulação em populações de alto risco, permitindo que recursos limitados sejam direcionados para intervenções cirúrgicas e manejo de IC, que impactam de maneira mais significativa a sobrevida.
Em síntese, assim como Carlos Drummond de Andrade, em “A Máquina do Mundo”, revela a tensão entre o conhecimento científico e a experiência humana diante da complexidade do universo, os dados atuais sobre febre reumática e doença cardíaca reumática evidenciam uma realidade marcada por lacunas significativas, desigualdades estruturais e desafios persistentes. Se, no poema, o autor nos convida a reconhecer a amplitude e a imprevisibilidade do mundo, na saúde global somos instados a confrontar a insuficiência de informações, a urgência de estratégias de prevenção e intervenção, e a responsabilidade ética de mitigar o sofrimento evitável. Nesse contexto, a produção científica e a prática clínica assumem não apenas o papel de instrumentos de observação, mas de agentes de transformação, demonstrando que o enfrentamento da DCR requer, à semelhança do verso drummondiano, a conjugação sensível entre conhecimento, realidade social e compromisso ético, esclarecendo o claro enigma que há em toda a problemática dessa doença.
Apontamentos:
A doença cardíaca reumática continua a representar um sério desafio global, especialmente em países de baixa renda, onde a falta de dados, recursos e acesso a tratamentos eficazes aumenta a mortalidade. Estudos recentes mostram que a gravidade das lesões valvares e o manejo intervencionista inadequado determinam os desfechos clínicos. A realidade da doença evidencia desigualdades estruturais e a necessidade urgente de estratégias de prevenção, intervenção e políticas de saúde contextualizadas. Tal cenário reforça que enfrentar a DCR exige não apenas conhecimento científico, mas compromisso ético e ação coordenada, ecoando a tensão entre ciência e experiência humana presente em Drummond.
Literatura Sugerida:
1 – Karthikeyan, Ganesan et al. Mortalidade e morbidade em adultos com doença cardíaca reumática. JAMA: the journal of the American Medical Association , v. 332, n. 2, p. 133–140, 2024.
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