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O Dueto Desafinado

Sertanejo do coração na doença aórtica mista

     Quem nunca avaliou um paciente com uma dupla lesão valvar aórtica moderada, com boa fração de ejeção, assintomático e pensou: “não, ainda não é hora de intervir”. Este pensamento é embasado em nossos guidelines.  Mas será que esta dupla lesão é tão inocente assim? Quais seriam os critérios para avaliar essas lesões pensando não apenas na valva mas no musculo e função cardíaca.

Como no sertanejo, o coração também canta em dupla. O ventrículo esquerdo (VE) é a primeira voz, poderosa, leva o refrão e empurra o sangue para a frente. O átrio esquerdo (AE) é a segunda voz, segura o tom, harmoniza e prepara o compasso da próxima batida. Quando estão afinados, o som é perfeito: o AE respira no tempo certo e o VE entra no tom exato. Essa harmonia se chama acoplamento atrioventricular (AV coupling), a sintonia entre quem recebe e quem ejeta.

     Na doença aórtica mista, o dueto desafina. Na estenose aórtica (EA), o microfone pesa, o fluxo precisa vencer a resistência. Na insuficiência aórtica (IA), o som volta, o sangue reflui no meio da melodia. E quando as duas acontecem juntas, mesmo que “moderadas”, o coração tenta cantar pressionado e ecoando ao mesmo tempo. O público (a sintomatologia clínica) ainda acha bonito, o paciente está assintomático, a fração de ejeção é normal, mas o ecocardiografista percebe que a harmonia mecânica já se perdeu.

O estudo: medindo a afinação do dueto

Wendy Tsang e colegas, no EHJ-CVI 2024, estudaram retrospectivamente, 260 pacientes assintomáticos, todos em ritmo sinusal e com FEVE ≥50%, divididos em seis grupos: EA moderada, EA grave, IA moderada, IA grave, EA+IA moderadas (MMAVD) e controles saudáveis. A proposta era simples e genial: medir quanto o AE e o VE ainda cantavam juntos, usando dois indicadores:

  • AV-S = soma dos valores absolutos do GLS VE e do LASrStrain mecânico do dueto.
  • Razão LA/VE = volume do AE dividido pelo volume do VE → harmonia estrutural do palco.

Os números da desafinação

Interpretação:

  • Todos os pacientes com EA+IA moderadas diferiram significativamente dos controles e das valvopatias moderadas isoladas (p < 0.01).
  • O GLS, LASr e AV-S da MMAVD foram iguais aos das valvopatias graves isoladas (p > 0.05).
  • Nenhuma diferença em FEVE, as alterações são subclínicas, mecânicas e precoces.

Conclusão numérica: o dueto “moderado” já desafina como um coração com valvopatia grave, só que sem sintomas.

O que o AV-S e a razão LA/VE realmente mostram

  • O GLS VE é a força da primeira voz, a contração e o relaxamento longitudinal.
  • O LASr é a flexibilidade da segunda voz, a complacência atrial.
  • O AV-S é o quanto as duas vozes ainda se escutam e respondem uma à outra.
  • A razão LA/VE mede o equilíbrio de palco, se um cresce demais, o som distorce.

Na MMAVD, o AV-S despencou para 47 ± 7%, igual ao de EA ou IA graves, e o LA/VE caiu para 0.9, abaixo dos padrões dos corações estruturalmente normais, mostrando que o volume ventricular predomina e já domina o compasso. O dueto parecia “moderado”, mas cantava fora do tom como o dos graves.

 

“As diretrizes ainda não sabem lidar com a doença aórtica mista. Nenhum parâmetro clássico traduz o peso hemodinâmico combinado. O acoplamento atrioventricular pode ser o novo mapa para entender quando a música do coração começa a sair do ritmo.”

A mensagem prática

  • Todos os pacientes eram assintomáticos e tinham FEVE ≥50%, mas já exibiam disfunção de acoplamento semelhante à das formas graves.
  • O strain detectou remodelamento silencioso — a fadiga do miocárdio antes da queda da fração de ejeção:
  • Um AV-S < 50% e LASr < 30% identificam o início dessa desafinação.
  • A razão LA/VE < 1 sinaliza desequilíbrio estrutural, com dilatação ventricular predominante.
  • Em outras palavras: moderada + moderada = desafinação grave.

A moral do dueto:

O átrio e o ventrículo são dois cantores afinados há uma vida. A Estenose aórtica aperta o microfone, a Insuficiência Aórtica devolve o eco. O coração ainda canta, mas já não canta junto.

“O Strain é o ouvido sensível que detecta o primeiro sinal de desafinação. O AV-S é o afinador que revela quando a harmonia acabou.”

Literatura Sugerida: 

1 – Sooriyakanthan M, Graham FJ, Ho N, Leong-Poi H, Tsang W. Alterations in left atrial and left ventricular coupling in mixed aortic valve disease. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2024 Nov 27;25(12):1652-1660.

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