A estenose aórtica (EAo) grave representa hoje um dos principais desafios da cardiologia moderna, sobretudo em populações idosas. Trata-se de uma condição progressiva, na qual a sobrecarga crônica de pressão leva a remodelamento concêntrico do ventrículo esquerdo, disfunção diastólica e, em estágios avançados, fibrose miocárdica irreversível. Nesse cenário, a introdução do implante transcateter de válvula aórtica (TAVI) transformou radicalmente a prática clínica, permitindo a correção da obstrução valvar em pacientes de alto risco cirúrgico, com benefícios claros em sobrevida e qualidade de vida. Contudo, a questão central que persiste é se essa intervenção, frequentemente realizada em fases avançadas da doença, é capaz de reverter ou ao menos mitigar o dano estrutural acumulado no miocárdio.
O estudo recentemente publicado por Myon e colaboradores acrescenta elementos importantes a essa discussão. Avaliando pacientes submetidos ao TAVI com seguimento médio de quase dois anos, os autores constataram que, apesar da melhora clínica inicial e da estabilização da fração de ejeção, os índices não invasivos de trabalho miocárdico não apresentaram evolução favorável. O achado mais preocupante foi o aumento do trabalho desperdiçado, sugerindo persistência de disfunção contrátil mesmo após o alívio do gradiente transvalvar. Esses resultados indicam que a fibrose e a remodelação avançada, presentes em muitos pacientes, podem limitar o potencial de recuperação ventricular, reforçando a ideia de que a intervenção tardia dificilmente promove remodelamento reverso significativo.
Esse conjunto de dados dialoga com evidências prévias que já haviam mostrado discrepância entre o alívio hemodinâmico imediato e a recuperação estrutural no longo prazo. Estudos de imagem avançada, como a ressonância magnética com realce tardio, documentaram que a presença de fibrose substitutiva está associada a pior prognóstico após a troca valvar, independentemente da técnica utilizada. Da mesma forma, análises com strain longitudinal global têm mostrado apenas discreta melhora após o TAVI, limitada em pacientes com remodelamento concêntrico acentuado. Nesse sentido, a introdução do conceito de “staging” de dano cardíaco, que classifica pacientes desde a hipertrofia ventricular até o comprometimento biventricular e da circulação pulmonar, fornece um arcabouço teórico que explica por que a intervenção em fases avançadas resulta em benefício incompleto.
Há aspectos positivos no estudo que merecem destaque. Em primeiro lugar, a utilização dos índices de trabalho miocárdico representa um avanço metodológico, por serem menos dependentes da pós-carga que parâmetros tradicionais, fornecendo visão mais acurada da função contrátil. Em segundo lugar, a inclusão de uma população idosa, com múltiplas comorbidades e elevada prevalência de EAo de baixo fluxo e baixo gradiente, reflete a realidade dos centros de referência, aumentando a relevância clínica dos resultados. Além disso, o seguimento prolongado permite observar não apenas a resposta inicial, mas também a trajetória funcional dos pacientes no médio prazo.
Entretanto, algumas limitações devem ser reconhecidas. O estudo foi conduzido em centro único, com número relativamente reduzido de participantes, o que restringe a generalização dos achados. O controle pressórico durante o seguimento mostrou-se insatisfatório, fator que pode ter influenciado negativamente os índices de trabalho miocárdico, uma vez que a pós-carga elevada interfere na performance ventricular. Outro ponto crítico é que a maioria dos pacientes apresentava estágios avançados de dano cardíaco, nos quais a possibilidade de remodelamento reverso é sabidamente limitada. Dessa forma, ainda permanece em aberto a questão sobre qual seria o impacto do TAVI em pacientes tratados precocemente, antes do estabelecimento de fibrose irreversível.
As implicações clínicas desses achados são relevantes. Primeiramente, reforçam a necessidade de uma estratificação de risco mais eficaz, capaz de identificar o momento ideal para a intervenção antes do ponto de não retorno. A incorporação de técnicas multimodais de imagem, como ressonância magnética e mapeamento T1, pode auxiliar na detecção precoce de fibrose e guiar a decisão terapêutica. Em segundo lugar, os resultados sugerem que o TAVI não deve ser encarado como solução isolada, mas sim integrado a uma abordagem abrangente que inclua otimização do tratamento farmacológico, especialmente com bloqueadores do sistema renina-angiotensina e estatinas, já associados à regressão de hipertrofia e melhora de prognóstico após a intervenção. Finalmente, reforça-se a importância do seguimento clínico rigoroso, uma vez que sintomas podem retornar em médio prazo, exigindo reavaliação terapêutica e, em alguns casos, intervenção adicional em valvopatias associadas.
Em conclusão, o TAVI consolidou-se como ferramenta terapêutica essencial para pacientes com EAo grave, mas seus efeitos sobre o remodelamento miocárdico em longo prazo permanecem limitados quando a intervenção ocorre em fases tardias da doença. Os dados atuais apontam para a necessidade de repensar o momento ideal da intervenção e de integrar estratégias farmacológicas e de imagem avançada ao manejo desses pacientes. O futuro da cardiologia intervencionista não reside apenas na capacidade de implantar válvulas de forma menos invasiva, mas também em identificar precocemente aqueles que ainda podem se beneficiar de uma reversão estrutural significativa.
Literatura Sugerida:
1 – Myon F, Marut B, Kosmala W, et al. Transcatheter aortic valve implantation in severe aortic stenosis does not necessarily reverse left ventricular myocardial damage: data of long-term follow-up. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2024 May 31;25(6):821-828.
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