fbpx

Disjunção do anel mitral

Vilã, mocinha, ou figurante no prolapso de valva mitral?

O prolapso de valva mitral (PVM) é a causa mais comum de insuficiência mitral primária em países ocidentais, com uma prevalência de 2,4% na população geral. O grau de insuficiência mitral é apontado como principal preditor prognóstico da doença.

A disjunção do anel mitral (DAM) caracteriza-se pelo deslocamento superior do anel valvar em relação ao miocárdio ventricular esquerdo, com a inserção do folheto posterior da válvula mitral diretamente na parede atrial (Figura 1). Este achado tem sido apontado como marcador de mortalidade principalmente à custa de sua associação com arritmias ventriculares.

Pode ocorrer tanto de maneira isolada, quanto associada ao PVM, especialmente com a degeneração mixomatosa do aparato valvar. Apesar da fama de vilã, ainda há a necessidade de evidências mais robustas na literatura quanto à prevalência da disjunção e sua associação com desfechos clínicos.

Uma coorte conduzida por Essayagh e cols. avaliou 595 pacientes consecutivos com PVM e teve por objetivo avaliar a prevalência de disjunção de anel mitral, as características fenotípicas e eventos em longo prazo, como mortalidade e arritmias clinicamente manifestas.  A idade média dos participantes do estudo foi de 61 ± 16 anos, com presença de PVM acometendo ambas as cúspides em 47%, redundância acentuada das mesmas em 48% e flail em 10%.

Em linhas gerais, os pacientes se apresentaram com fração de ejeção ventricular esquerda preservada (62 ± 7%), com dilatação leve do ventrículo esquerdo e o volume indexado do átrio esquerdo de 44 ± 21 mL/m². História pregressa de morte súbita cardíaca abortada em ritmo chocável foi reportada em 9 pacientes (dos quais 7 foram diagnosticados com disjunção de anel mitral).

A prevalência encontrada de disjunção foi de 31%, e estes indivíduos apresentaram menor idade média, menores taxas de comorbidades como doença arterial coronária, insuficiência cardíaca, hipertensão arterial e fibrilação atrial. Com relação à presença de sintomas, os portadores de disjunção apresentaram mais episódios de síncope e palpitações.

Morfologicamente, associou-se a presença de cúspides mais longas e redundantes, bem como a maiores taxas de prolapso acometendo ambas e degeneração mixomatosa, ventrículo com maior diâmetro, porém sem diferença significativa no tangente ao volume do átrio esquerdo, fração de ejeção e gravidade da insuficiência mitral.

Após um seguimento médio de 10,3 ± 3 anos, não se evidenciou associação significativa entre a presença de disjunção e mortalidade, mesmo após ajustes para diversas variáveis (idade, gênero, sintomas, fração de ejeção, grau de regurgitação mitral e cirurgia valvar).

Em contrapartida, verificaram-se maiores taxas de eventos arrítmicos ventriculares nos portadores de disjunção, com Hazard ratio de 2,6 após ajustes para possíveis fatores confundidores, achado que se manteve tanto nos pacientes em tratamento clínico, quanto naqueles submetidos a procedimentos para correção da valvopatia (Figura 2).

Frente aos achados desta coorte, o diagnóstico de disjunção do anel mitral no contexto de prolapso de valva mitral deve deflagrar cuidado e avaliação contínua da equipe assistente no que tange ao diagnóstico e manuseio de arritmias ventriculares clinicamente manifestas, mesmo que possivelmente não estejam associadas a eventual incremento das taxas de mortalidade.

A associação de prolapso com arritmias ventriculares potencialmente malignas é sugerida na literatura pela presença de atividade ectópica ventricular originada dos músculos papilares destes pacientes, bem como pela presença de fibrose em exames de histopatologia e ressonância magnética nesta topografia e também na porção basal da parede inferolateral do VE, frequentemente relacionada à disjunção.

Todavia, há diversas limitações nos estudos que avaliam eventos arrítmicos em pacientes com disjunção, especialmente no tocante a amostras de tamanho limitado, desenho transversal, heterogeneidade quanto à presença de prolapso, tornando-os propensos a vieses.

A coorte supracitada demonstrou que a disjunção do anel mitral é preditor independente do desenvolvimento de arritmias ventriculares em portadores de prolapso de valva mitral ao longo de um seguimento de 10 anos, com manifestação usualmente tardia, sem associação com mortalidade global e súbita.

Há também evidências que caminham em sentido oposto na literatura. Outro trabalho observacional conduzido pelo mesmo grupo demonstrou elevada prevalência de arritmias ventriculares frequentes (designadas neste estudo como presença de ≥ 5% de extrassístoles ventriculares em Holter de 24 horas) e as mesmas foram associadas à prolapso de ambas as cúspides, redundância marcada das mesmas, disjunção de anel mitral, maiores diâmetros cavitários esquerdos, bem como alteração da repolarização ventricular em parede inferior (inversão da onda T e/ou infradesnível do segmento ST).

Apesar de pouco frequente nesta população (9%), arritmias ventriculares graves (determinadas pelos autores como taquicardias ventriculares com FC ≥ 180 bpm), relacionaram-se com maior mortalidade, implante de cardiodesfibrilador implantável e necessidade de ablação, mesmo após ajuste para diversas variáveis (Figura 3).

Em uma revisão da literatura, observou-se forte associação entre disjunção ≥ 8,5 mm, taquicardia ventricular sustentada (OR 10, IC 95% 1.28 – 78.1) e a presença de realce tardio no músculo papilar anterossuperior com eventos arrítmicos graves (OR 7,35, IC 95% 1,15 – 47,02).

Frente a evidências contraditórias, impõe-se a necessidade de ensaios clínicos para avaliar a associação de disjunção de anel mitral, prolapso de valva mitral, arritmias e mortalidade, bem como a eficácia de procedimentos eletrofisiológicos ablativos e terapias cirúrgicas/endovasculares para manuseio desta valvopatia com o objetivo de diminuir a incidência de arritmias malignas e, eventualmente, mortalidade neste cenário.

Atualmente ainda permanece a intrigante questão: seria a disjunção do anel mitral vilã, mocinha ou mera figurante no prolapso de valva mitral?

Literatura Sugerida: 

1 – Essayagh B, Sabbag A, Antoine C, Benfari G, Batista R, Yang LT, et al. The Mitral Annular Disjunction of Mitral Valve Prolapse. JACC: Cardiovascular Imaging. 2021 Nov;14(11):2073–87.

2 – Essayagh B, Sabbag A, Antoine C, Benfari G, Yang LT, Maalouf J, et al. Presentation and Outcome of Arrhythmic Mitral Valve Prolapse. J Am Coll Cardiol. 2020 Aug 11;76(6):637–49.

Compartilhe esta postagem

Privacidade e cookies: Este site usa cookies. Ao continuar no site você concorda com o seu uso. Para saber mais, inclusive como controlar cookies, veja aqui: Política de cookie

As configurações de cookies deste site estão definidas para "permitir cookies" para oferecer a melhor experiência de navegação possível. Se você continuar a usar este site sem alterar as configurações de cookies ou clicar em "Aceitar" abaixo, estará concordando com isso.

Fechar