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Disjunção do anel mitral

Um achado mal compreendido?

A resposta para essa pergunta reside na trajetória comum de muitas entidades cardiológicas: do reconhecimento inicial ao overdiagnosis, até alcançarmos sua contextualização adequada. À semelhança do que ocorreu com o próprio prolapso valvar mitral — cujos critérios diagnósticos foram progressivamente refinados após um período de superdiagnóstico — a disjunção do anel mitral (MAD – Mitral Annular Disjunction) segue caminho similar.

As evidências atuais sugerem que, apesar de estar associado também a desfechos arrítmicos quando encontrada isoladamente (sem prolapso valvar mitral concomitante), a MAD ganha mais significado clínico quando integrado a outros marcadores e interpretado dentro de um contexto mais amplo clínico, eletrocardiográfico e de imagem. Esta visão integrativa supera tanto a negligência inicial quanto o eventual “overdiagnosis” após seu reconhecimento. Frequentemente interpretada como mera variante anatômica ou achado incidental, o MAD  representa, na verdade, potencial substrato arritmogênico quando adequadamente contextualizada como peça-chave no quebra-cabeça do prolapso da valva mitral (PVM) arrítmico, justificando a crescente atenção que tem recebido na literatura científica.

Devemos lembrar que o prolapso da valva mitral (PVM) é um achado prevalente na população, presente em 2-3%. Existe uma parcela de pacientes com PVM que possuem um maior risco de eventos arrítmicos e/ou morte súbita, subgrupo este que chamamos de PVM arrítmico. Apesar da taxa de morte súbita nos pacientes com PVM arrítmico ser menor que nos pacientes com cardiomiopatia hipertrófica (CMH), a prevalência de PVM é cerca de dez vezes maior que a prevalência de CMH, o que faz com que a prevalência total de eventos seja potencialmente maior!

Nesses pacientes,  existem alguns marcadores fenotípicos de maior risco para desfechos desfavoráveis como alterações eletrocardiográficas (inversão de onda T no ECG de repouso sobretudo nas derivações inferiores, extrassístoles ventriculares em Holter e/ou teste ergométrico), alterações anatômicas e funcionais (MAD, curling sistólico, prolapso das duas cúspides, folhetos da valva mitral redundantes, hipertrofia basal, FEVE < 50% e aumento do átrio esquerdo), bem como alterações teciduais (fibrose miocárdica avaliada através da técnica de realce tardio da ressonância magnética cardíaca e inflamação miocárdica avaliada pela tomografia com emissão de pósitrons).

E aí vem o primeiro conceito que precisamos reforçar: A disjunção do anel mitral pode sim por si só estar relacionada a desfechos arrítmicos, independente de ter PVM concomitante como mostra alguns estudos, porém devemos ter em mente que este é um achado que deve ser avaliado em conjunto a um contexto clínico e de exames complementares( paciente com sintomas de palpitações, pré-síncope,  síncope, morte súbita abortada excluída outras causas associado a exames complementares gráficos e por imagem).

Mas estamos falando de MAD…O que é a disjunção do anel mitral?

A disjunção do anel mitral é uma inserção anormal da linha de flexão do anel mitral na parede atrial esquerda.Há uma separação entre a implantação do folheto posterior no local onde supostamente estaria o anel mitral (topo da porção muscular basal ventricular esquerda). E agora entramos em uma discussão que ainda vem gerando polêmica: De acordo com o Expert Consensus Statment 2022 sobre síndrome arrítmica relacionada ao PVM, a MAD é um achado sistólico caracterizado pela separação entre a porção basal miocárdica do VE e o anel mitral que sustenta o folheto mitral posterior. Logo, veio um questionamento: Se isso é uma alteração anatômica onde a inserção não habitual do anel valvar mitral seria uma anomalia anatômica “permanente” (e não necessariamente persistente, como vamos discutir agora), não deveria também estar presente na diástole? E aí que vem outro ponto importante para compreendermos dentro do contexto de MAD. Na MAD dito como “verdadeira”, existe real deslocamento da inserção do folheto no anel mitral originando um “espaço” entre o AE e porção basal do VE na imagem, enquanto na chamada “PseudoMAD”, o ponto de inserção do folheto no anel não está deslocado, porém há uma justaposição do tecido do folheto com a parede posterior do AE “falsamente” parecendo na imagem que há uma distância entre o VE e o AE (prolapso de tecido excessivo do folheto posterior justaposto à parede posterior do AE, porém aqui o anel valvar tem implantação habitual). 

Logo, a chave para compreender a distinção entre MAD verdadeira (onde existe real deslocamento da inserção do folheto no anel) e pseudoMAD (onde há apenas justaposição do tecido valvar redundante com a parede atrial, criando falsa impressão de separação) está mais ligada ao efeito dinâmico de estresse e tracionamento excessivo que esta inserção deslocada do folheto no anel mitral gere ao miocárdio do que a ser um achado necessariamente visualizado tanto na sístole quanto na diástole. Esta diferenciação requer avaliação meticulosa durante todo o ciclo cardíaco e “frame by frame”, sendo frequentemente desafiadora na prática clínica identificar a real alteração anatômica versus um efeito visual do tecido redundante valvar justaposto à parede atrial.

 

E será que toda MAD tem significado prognóstico?

Além dos demais achados relacionados à síndrome do PVM arrítmico, a localização, o tamanho, a associação com prolapso valvar mitral e a caracterização tecidual do miocárdio podem trazer informações prognósticas importantes. Quanto à localização, foi realizado um estudo que avaliou a presença da MAD e sua localização em corações estruturalmente normais, e se observou que há uma distribuição bimodal em pacientes com coração estruturalmente normais, sendo mais frequente a MAD distribuída nos segmentos anterolateral (P1) e inferosseptal (P3), enquanto a MAD que parece estar mais associada a um fenótipo com ocorrência de eventos arrítmicos, foram mais frequentemente observadas nos segmentos posteriores da valva mitral, sobretudo no segmento inferolateral (P2).

Quanto ao tamanho da disjunção, viu-se que quanto maior a comprimento da MAD, maior a ocorrência de fibrose miocárdica. Foi visto que um comprimento > 8.5mm foi um forte preditor de TVNS. Então, qual comprimento deveríamos valorizar na prática? Existem diversos estudos com diferentes definições de comprimento, porém a maior parte dos estudos definem a MAD e valorizam comprimentos a partir de 5mm ou mais.

 

E no que a imagem pode nos auxiliar na estratificação prognóstico do paciente com MAD?

Além de achados que podem ser visualizados no ecocardiograma (Curling sistólico, sinal de pickelhaube, disfunção ventricular, aumento de câmaras esquerdas, regurgitação mitral importante, redução do strain global do VE, alteração da dispersão mecânica, prolapso de ambos os folhetos e folhetos redundantes), a ressonância magnética cardíaca (RMC) tem um papel fundamental do ponto de vista prognóstico.

Além da avaliação morfofuncional e da possibilidade de avaliação de diversos planos sem limitação de janela acústica, a RMC tem a capacidade de caracterização tecidual através da técnica de realce tardio e mapeamento paramétrico.

A fibrose miocárdica, avaliada através da técnica de realce tardio, tem importante valor prognóstico no contexto do PVM arrítmico e da MAD, uma vez que a fibrose presente no músculo papilar e no segmento inferolateral basal do VE parece ter desfechos desfavoráveis arrítmicos. Outra técnica em crescimento é o mapeamento paramétrico, onde pacientes que possuem PVM concomitante à presença de MAD possuem um mapeamento T1 aumentado.

Outro método de imagem que vem ganhando espaço é a tomografia por emissão de pósitrons (PET-CT), auxiliando na compreensão do papel da inflamação miocárdica na patogênese da formação das áreas de fibrose, áreas estas que em conjunto com gatilhos, servem como substrato para focos de arritmia. Um pequeno estudo prospectivo de pacientes com PVM correlacionou áreas de captação pelo PET com áreas de realce tardio na RMC e houve alguns dados interessantes: 85% dos pacientes tiveram captação pelo PET, sendo que 70% dos pacientes tiveram esta captação possuíam área de fibrose correspondente na RMC.

Assim, a MAD deve ser compreendida como uma das peças dentro de um quebra cabeça no contexto mais amplo da síndrome do prolapso mitral arrítmico, com achados clínicos compatíveis (palpitações, síncope ou pré-síncope, morte súbita abortada), achados de risco eletrocardiográficos (ECG, Holter e/ou teste ergométrico) e achados de risco nos diversos métodos de imagem (localização mais posterior, presença de fibrose miocárdica sobretudo inferolateral e nos músculos papilares, comprimento da MAD, presença de curling sistólico, hipertrofia basal do VE, sinal de pickelhaube no ecocardiograma,  disfunção ventricular, aumento de câmaras esquerdas, regurgitação mitral importante, redução do strain global do VE, concomitância com PVM dos dois folhetos e/ou folhetos redundantes, bem como captação pelo PET e demais achados citados ao longo do texto).

Literatura Sugerida: 

1 – Van der Bijl et al. Mitral Annular Disjunction in the Context of Mitral Valve ProlapseIdentifying the At-Risk Patient.JACC: CARDIOVASCULAR IMAGING, VOL. 17, NO. 10, 2024.OCTOBER 2024:1229 – 1245

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