Step-by-Step
A regurgitação mitral é uma doença cardíaca valvar comum e está associada a considerável morbimortalidade. O diagnóstico correto do mecanismo e da gravidade da lesão direcionarão o tratamento, e tal diagnóstico pode ser desafiador e feito de maneira incorreta.
O exame de imagem frequentemente realizado é o ecocardiograma transtorácico, podendo ser complementado pelo ecocardiograma transesofágico, que consegue avaliar melhor a morfologia e a gravidade da regurgitação, essenciais para um planejamento pré-intervenção.
A primeira questão a ser respondida é qual o mecanismo da insuficiência mitral. A regurgitação leve detectada pelo ecocardiograma é frequente em pacientes saudáveis e com um aparelho valvular mitral estruturalmente normal, e isso se deve em parte à sensibilidade do Doppler colorido em detectar fluxos de baixa velocidade. Quando há suspeita de que a regurgitação é mais do que leve e/ou na evidência de alteração estrutural do aparelho valvar, é importante determinar com precisão o mecanismo do refluxo.
Para tanto é necessário avaliar a morfologia do aparelho valvar (cúspides, anel, aparelho subvalvar e miocárdio de suporte) bem como sua mobilidade, pela classificação de Carpentier. Quando a morfologia e a mobilidade são combinadas, a classificação da insuficiência mitral em primária, secundária ou mista é mais precisa.
Etiologia primária: anormalidades estruturais das cúspides ou do aparato subvalvar (ex.: rotura de cordoalha)
Etiologia secundária: mais comumente causada por disfunção/dilatação do ventrículo esquerdo (VE) ou alterações segmentares da contratilidade, causando redução da força de fechamento das cúspides com apicalização da coaptação ou tração de algum segmento valvar. A dissincronia do ventrículo esquerdo por causa de bloqueio de ramo ou por estimulação ventricular direita também são causas de regurgitação mitral secundária, assim como a dilatação pura do anel mitral devido a dilatação do átrio esquerdo na fibrilação atrial crônica ou cardiomiopatia restritiva – funcional atrial.
Etiologia mista: quando há múltiplos mecanismos, especialmente em pacientes idosos com alterações fibrocalcíficas na valva. No entanto, geralmente há um mecanismo dominante, que se torna o alvo do tratamento.
Agora o objetivo é entender a gravidade da regurgitação. Idealmente, a insuficiência mitral seria medida por parâmetros quantitativos ao longo de uma escala contínua. Esses parâmetros incluiriam a área efetiva do orifício regurgitante (EROA), o volume regurgitante (RVol) e a fração regurgitante (RF), que é a porcentagem do volume da regurgitação em relação ao volume sistólico total do VE.
Esses valores interagem de maneira complexa e dependente, por exemplo, da velocidade de fluxo transvalvar, da função sistólica ventricular e do tempo de duração da regurgitação. Como a precisão e reprodutibilidade desses métodos quantitativos são fatores limitantes, todas as diretrizes recomendam seu uso em conjunto e com outros parâmetros qualitativos para definir a gravidade da insuficiência como leve, moderada ou grave.
Isso ajuda a minimizar os erros de medição conhecidos em cada parâmetro e ajuda a garantir que a totalidade de dados seja internamente consistente. Quando os dados do exame transtorácico são internamente inconsistentes ou conflitam com a apresentação clínica, é recomendado fazer a complementação transesofágica ou uma ressonância de coração para complementação diagnóstica.
Nestes casos, o ecocardiograma transesofágico permite um maior número de recursos avançados, como software 3D dedicado a avaliação da valva mitral e apresenta uma melhor resolução, sendo um exame mais acurado para determinar o mecanismo e a gravidade da insuficiência mitral.
Entretanto, devemos ter em mente que, em algumas situações, podemos subestimar a regurgitação devido aos efeitos da sedação ou anestesia. A ressonância pode gerar medições quantitativas mais reprodutíveis, relacionados a volumes cavitários, como volume e fração regurgitantes, bem como fração de ejeção ventricular.
Entendido o mecanismo e a gravidade, agora é a hora da repercussão hemodinâmica, quais as consequências da insuficiência mitral no átrio esquerdo, ventrículo esquerdo e circulação pulmonar?
A regurgitação de etiologia primária impõe uma sobrecarga de volume no lado esquerdo, portanto a insuficiência mitral crônica grave levaria a dilatação das câmaras esquerdas e da pressão venosa pulmonar. No quadro agudo, as câmaras esquerdas podem não estar dilatadas, mas as pressões atrial e das veias pulmonares estarão. Se tudo isso for normal, provavelmente a insuficiência mitral não é grave.
Quadros de etiologia primária podem até ser dinâmicos, mas uma alteração morfológica grave, como o flailda cúspide sugere regurgitação mitral grave. A insuficiência mitral secundária é mais difícil de avaliar, uma vez que a morfologia das cúspides é normal e seus mecanismos podem decorrer da disfunção sistólica e/ou diastólica ou fibrilação atrial. Sendo assim, a avaliação da insuficiência mitral secundária deve ser feita após compensação clínica com tratamento ideal da disfunção do VE.
Depois de tudo isso, chegou a hora de entender situações e características anatômicas que apoiam ou interferem na abordagem. Uma vez que o mecanismo é definido com precisão e a regurgitação é considerada grave, a avaliação detalhada do ecocardiograma transesofágico tridimensional e da ressonância são necessárias para avaliar se o dispositivo ou procedimento é anatomicamente adequado, viável e seguro para um determinado paciente.
Agora vamos a algumas dicas, truques e armadilhas na avaliação da regurgitação mitral:
– Visualize pelo bidimensional todo o aparelho mitral em múltiplas incidências.
– Sobreposição do folheto anterior na insuficiência mitral secundária: a cúspide posterior está restrita e a anterior sobrepõe-se a ela com uma grande lacuna. Não é prolapso porque a cúspide anterior nunca se move superiormente ao anel.
– A regurgitação não holossistólica é comum e muitas vezes leva a superestimar a gravidade da regurgitação ao utilizar medições de quadro único como a EROA.
– Preste atenção a velocidade máxima do jato ao Doppler contínuo. As velocidades de pico típicas variam em torno de 5 m/s, mas podem estar aumentadas quando a pressão do VE é alta.
– Considere a fórmula simplificada do PISA.
– Cuidado com pequenos erros na medição do raio da zona de convergência pelo método de PISA.
– Cuidado com orifício não circular ou orifícios múltiplos, muito comum em etiologia secundária.
– A insuficiência mitral é dinâmica, especialmente a secundária.
– Achados ecocardiográficos adjuvantes que contribuem ou contradizem a insuficiência mitral grave são úteis para evitar a superestimação.
– Cálculos volumétricos como a fração de regurgitação são difíceis, portanto, devem ser utilizados com cautela.
– A convergência proximal do jato da regurgitação é excelente para localizar a origem e a direção dos jatos, fundamental para determinar o mecanismo e a reparabilidade da patologia.
Entendemos que a avaliação da insuficiência mitral no laboratório de ecocardiografia é tão corriqueira quanto, e não raros casos, desafiadora!
Literatura Sugerida:
1 – Paul A. Grayburn, James D Thomas. Basic Principles of the Echocardiographic Evaluation of Mitral Regurgitation. JACC Cardiovasc Imaging. 2021 Jan 13;14(4):843-853.
Click Valvar Academy#409 – Step-by-Step do Eco da Mitral
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