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Vacina para Febre Reumática

Uma agulha pode prevenir um bisturi!

Nas vielas do subúrbio, nas periferias invisibilizadas e nos corredores de unidades de saúde muitas vezes mal equipadas, habita o retrato da negligência global com a febre reumática e sua forma mais devastadora: a doença cardíaca reumática (DCR). São mais de 300 mil mortes anuais, a maioria sendo evitáveis, em crianças e jovens que, como Zezé, o protagonista do livro “Meu Pé de Laranja Lima”, vivem imersos na pobreza, na exclusão e na ausência de perspectivas de cuidado.

É nesse cenário que a metáfora “uma agulha pode prevenir um bisturi” transcende seu valor retórico e se transforma em imperativo ético. O recente relatório publicado pela BMJ Global Health, resultado do workshop do National Heart, Lung and Blood Institute, apresenta com precisão científica a gravidade dessa lacuna sanitária: mais de 600 milhões de casos anuais de faringite estreptocócica (principalmente em crianças) podem ser a porta de entrada para complicações autoimunes, como febre reumática aguda (FRA) e, por fim, a DCR.

Apesar da impressionante carga global, não há, até hoje, uma vacina licenciada contra o Streptococcus pyogenes (grupo A – StrepA). Isso ocorre por diversos motivos: desafios técnicos relacionados à diversidade de cepas, risco de reatividade cruzada autoimune, limitações de modelos animais, ausência de biomarcadores e, sobretudo, uma crônica falta de financiamento — reflexo da baixa visibilidade internacional dessas doenças, típicas de países de baixa e média renda.

A analogia com Zezé, da obra de José Mauro de Vasconcelos, não é aleatória. O protagonista representa a infância vulnerável, desprotegida e com potencial negligenciado. Se ele tivesse uma infecção de garganta hoje, talvez sequer fosse diagnosticado; talvez fosse tratado com um antibiótico ineficaz ou em dose errada; talvez fosse mais um entre milhões que desenvolvem, anos depois, uma cardiopatia silenciosa, que restringe sua vida adulta e o condena a cirurgias cardíacas dispendiosas — quando disponíveis.

O relatório técnico discute as frentes de pesquisa prioritárias para o desenvolvimento de uma vacina contra o StrepA. Os caminhos são complexos, mas viáveis. Primeiro, há necessidade de compreensão profunda da imunobiologia da bactéria, de seus mecanismos de evasão imune e dos fatores que desencadeiam autoimunidade. Segundo, destaca-se a importância dos modelos animais, ainda incipientes, e o potencial dos modelos de desafio humano, como já ocorre para outras doenças como a febre tifoide.

Além disso, o documento enfatiza o papel da vacinação de mucosa, especialmente a intranasal, que poderia gerar proteção local e impedir a colonização inicial. Hoje, algumas vacinas promissoras — como StreptInCor (Brasil) e CombiVax (Austrália) — já estão em fase pré-clínica ou iniciando estudos de fase 1, com base em antígenos conservados, buscando induzir imunidade sem risco de reação autoimune. No entanto, o pipeline permanece raso, refletindo décadas de desinteresse por parte da indústria farmacêutica e das agências de fomento.

A prevenção primordial — antes mesmo da infecção inicial — é o ideal ouro da saúde pública. Investir no desenvolvimento da vacina contra o StrepA é uma das estratégias mais custo-efetivas e impactantes para romper o ciclo de pobreza-doença-cirurgia-dor. A pandemia de COVID-19 mostrou que é possível acelerar desenvolvimento, testes e implementação de vacinas quando há vontade política e cooperação internacional. Por que não aplicar o mesmo modelo à DCR, que ceifa vidas com igual crueldade?

O artigo também propõe o desenvolvimento de uma rede global de vigilância para dar suporte ao licenciamento de vacinas, especialmente nos países onde a DCR é mais prevalente. Dados epidemiológicos confiáveis, ensaios clínicos bem conduzidos e envolvimento das comunidades locais são essenciais para garantir que essa vacina, quando pronta, chegue a quem mais precisa — os Zezés de hoje, nas periferias, nos interiores esquecidos, nos países com sistemas de saúde em frangalhos.

A ciência sempre sabe o que faz. O bisturi, metáfora da cirurgia corretiva tardia, é caro, exige grande tempo de recuperação e muitas vezes ineficaz. A agulha, símbolo da vacina preventiva, é barata, eficaz e carrega consigo a promessa de uma infância mais saudável, de uma adolescência mais livre e de uma vida adulta sem limitações cardíacas. 

Apontamentos finais:

  1. Urgência da ação translacional: A transformação do conhecimento científico em políticas públicas exige investimento coordenado entre governos, universidades e indústria, com atenção especial à segurança e eficácia das vacinas candidatas em populações vulneráveis.
  2. Incorporação da perspectiva social: A vacina contra o StrepA deve ser mais que um produto biotecnológico — deve ser um instrumento de justiça social, que leve saúde onde antes havia abandono. Afinal, como diria Zezé: “A gente precisa aprender a proteger o coração antes que ele fique doente de verdade.”

Literatura Sugerida:

1 – FULURIJA, A. et al. Research opportunities for the primordial prevention of rheumatic fever and rheumatic heart disease-streptococcal vaccine development: a national heart, lung and blood institute workshop report. BMJ global health, v. 8, n. Suppl 9, p. e013534, 2023.

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