Insights para o dia a dia
A valva mitral tem um aparato morfofuncional complexo e dependente de várias interações com estruturas adjacentes. Evidentemente, o acometimento direto dos folhetos da valva mitral pode levar a disfunções, mas compreender bem mais do que isso é fundamental numa avaliação detalhada dessa valva cada vez mais estudada.
O anel mitral tem sido avaliado por diversos métodos diagnóstico e ele parece ter mais importância do que imaginávamos anos atrás.
Sua dilatação e mudança de morfologia tridimensional na presença de uma dilatação secundária a uma fibrilação atrial permanente por anos já configura um subtipo com possibilidades terapêuticas específicas e isso pode ser decisivo numa tomada de decisão intervencionista.
Já a calcificação extensa do anel da valva mitral, durante muitos anos, configurava apenas um achado isolado e sem repercussão adequada. No entanto, atualmente, além de ser um marcador prognóstico negativo, interfere diretamente na dinâmica contrátil do ventrículo esquerdo, por perda de mobilidade fundamental na performance ventricular ou mesmo pode alterar a funcionalidade dos folhetos que ali se inserem levando ao surgimento de disfunção valvar, seja do tipo estenose, seja insuficiência.
Como nos países desenvolvidos, a prevalência da febre reumática praticamente desapareceu, a estenose mitral de etiologia calcifica, passou a ter mais atenção, mesmo que a coorte acometida seja pacientes com idade acima dos 80 anos.
Como marcador e achado anatômico, em exames de imagem, sendo a tomografia a de melhor definição espacial, a prevalência de envolvimento mitral no processo de calcificação pode chegar até a 40% em idosos, mas na população geral, encontramos algo em torno de 15%.
Os fatores de risco que levam ao surgimento dessa alteração são os mesmos fatores que se correlacionam diretamente com a doença arterial coronariana ou mesmo a estenose aórtica calcífica, o que torna essas doenças muitas das vezes, coexistentes.
Um dado que pouco se sabe é que o simples fato de encontrarmos um gradiente transvalvar acima de 3mmHg já agrega valor prognóstico negativo nesses pacientes, fazendo com que o ecocardiografista deva prestar muito mais atenção na avaliação hemodinâmica na presença de algum grau de calcificação.
Um aspecto interessante na disfunção do tipo estenose é a morfologia do jato de aceleração encontrado. Como na etiologia reumática, a fusão comissural é a chave da fisiopatologia, o fluxo que se forma tem o formato de funil, já em casos de extensa calcificação, o acometimento é na base do folheto, formando uma estrutura rígida em formato de prateleira, trazendo um fluxo tubular, tornado a avaliação diagnóstica de gravidade mais desafiadora com os métodos ecocardiográficos atualmente utilizados. Diga-se de passagem, o método de escolha nesse contexto é a equação de continuidade.
Do ponto de vista clínico, deve-se estar atento a repercussões quando encontramos as seguintes configurações hemodinâmicas da valva mitral calcificada: AV < 1,5cm2 para lesão do tipo estenose, para lesão do tipo regurgitativa, um grau maior do que moderado já apresenta impacto e para configurações mistas, gradientes diastólicos médios acima de 8mmHg apontam para um paciente mais sintomático.
Após toda essa avaliação o manejo desses pacientes ainda é predominantemente clínico com diureticoterapia direcionada e uma abordagem para tratamento da insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada, em que a disfunção diastólica é a chave fisiopatológica.
O tratamento intervencionista, além de extremamente desafiador, tanto para o cirurgião, quanto para o hemodinamicista, pode não trazer grandes benefícios, visto que pressões cavitarias ainda permaneceriam elevadas pelas doenças subjacentes.
Ainda há muito a caminhar nesse grupo de pacientes, mas compreendê-los já é mandatório nos ambulatórios de cardiologia, pois cada dia mais, teremos que manejar esses casos.
Literatura Sugerida:
1 – Churchill TW, Yucel E, Deferm S, et al. Mitral Valve Dysfunction in Patients With Annular Calcification: JACC Review Topic of the Week. J Am Coll Cardiol. 2022 Aug 16;80(7):739-751.
Click Valvar#383 – Insights de MAC
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