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Odisseia da Estenose Aórtica

Jornada de 6 décadas…

Quando observamos a história da cardiologia, encontramos lá na década de 60 uma grande corrida, emocionante e desafiadora para entender e manejar a estenose aórtica.

A cirurgia convencional dava seus primeiros passos, possibilitando a troca da valva nativa doente com o implante de uma prótese, prolongando e melhorando a vida de inúmeros pacientes que viviam uma doença debilitante e quase sempre fatal.

Mas essa história não é feita apenas de claros sucessos. A mortalidade precoce chegando a 15% associada a trombose e disfunção protética com desfechos catastróficos eram rotina nas enfermarias dos grandes centros que se propunham a desenvolver a fronteira da cardiologia.

Sempre que estamos diante de patologias como essas e que as únicas ferramentas terapêuticas disponíveis apresentam esse número elevado de desfechos negativos, uma das mais importantes tarefas acaba caindo nos ombros dos cardiologistas clínicos: a seleção adequada de caso a caso.

À época, essa seleção era desafiadora, pois pouco se conhecia da história natural da Estenose Aórtica. Dr. Eugene Braunwald começou a descrever essa evolução examinando os casos que se negavam a ir para o procedimento ou mesmo para aqueles em que havia uma fila demorada para a intervenção.

O resultado desse acompanhamento é conhecido pela quase totalidade dos cardiologistas, através da famosa curva de sobrevida da Estenose Aórtica. A sobrevida dos pacientes com estenose aórtica assintomática vive um período considerado latente, com uma evolução bem próxima dos demais pacientes para a mesma faixa etária. No entanto, uma vez que sintomas se desenvolvem, como a angina, a síncope e a insuficiência cardíaca, marcada pela dispneia, sem manifestem, a curva de sobrevida literalmente desabam. Os pacientes “caem do penhasco”

Diante desses achados, o acompanhamento clínico desses casos assintomáticos era uma espera vigilante, com o encaminhamento para a cirurgia no momento do desenvolvimento dos sintomas.

De forma clara e contundente, houve uma imensa melhora nos métodos diagnósticos, cada vez mais sensíveis ao longo das últimas 6 décadas da cardiologia clínica.

Inclusive, a principal etiologia de estenose aórtica mudou durante esse período. Antes tínhamos uma elevada prevalência da doença reumática, agora, a degeneração e calcificação tomam a liderança como a causa mais comum em adultos, tendo sua prevalência ainda em ascensão.

De forma concomitante, o risco da troca valvar convencional se reduziu drasticamente, tanto pelo melhor entendimento do paciente, quanto do aprendizado da técnica cirúrgica e melhora do suporte tecnológico no intra e no pós-operatório.

A abordagem transcateter tornou-se uma alternativa possível no início dos anos 2000 e hoje, nos grandes centros de referência já é a modalidade de intervenção com maior volume e melhores resultados encontrados na literatura.

Mesmo diante de tantos avanços e evidências científicas cada vez mais robustas, lidar com a arte de tomar a decisão adequada ponderando os riscos da intervenção e a história natural permanece sendo a virtude mais preciosa do cardiologista clínico.

Análises de banco de dados imensos nos mostram que, em grandes centros, considerados de referência, até 40% dos pacientes que recebem o diagnóstico de estenose aórtica importante não são adequadamente encaminhados para o procedimento.

Já discutimos diversas vezes aqui na nossa plataforma as possíveis razões para esse dado alarmante, mas novamente, uma vez diante do diagnóstico estabelecido, o paciente não segue na linha de tratamento adequada. Imagina aqueles que nem o diagnóstico preciso receberam.

Os casos de estenose aórtica de baixo gradiente, que são desafiadores por si só, tanto no diagnóstico, quanto no manejo poderiam, inclusive piorar em muito essa casuística de indivíduos que necessitam de intervenção e não a recebem adequadamente.

Em paralelo a isso, pesquisadores direcionam suas energias para uma melhor estratificação dos pacientes buscando atingir um ponto de indicação cada vez mais precoce, objetivando evitar os danos da sobrecarga crônica e um possível dano miocárdico irreversível.

Uma nova proposta de linha de corte para a fração de ejeção tem sido buscada ativamente, talvez se aproximando atualmente de 55% para uma indicação mais adequada. A pesquisa de fibrose miocárdica cada vez mais presente na clínica diária, com diversos métodos diagnósticos, seja pela ressonância ou por outros métodos indiretos como o strain miocárdico e até mesmo a eletrocardiografia.

Marcadores séricos como o BNP e a troponina parecem ter seu papel nesse desafio diagnóstico, embora ainda careçam de evidências robustas.

E mesmo na ausência desses achados, ativamente procurados nos pacientes assintomáticos, o simples fato de encontrarmos um gradiente transvalvar médio acima de 50mmHg, uma velocidade máxima do jato acima de 5m/s e uma área calculada menor do que 0,75cm2 já é o suficiente para encarar uma cirurgia em um contexto de baixo risco.

Olhando para o futuro, é muito provável que a inteligência artificial irá melhorar a detecção precoce de casos assintomáticos, indicando um acompanhamento mais agressivo para os casos que recebam determinadas “red flags”. Além disso, existem esforços para desenvolver uma série de terapias clínicas visando atuar na patogênese da estenose aórtica. Exemplo claro é a observação de que níveis elevados de lipoproteínas são um importante fator de risco para o desenvolvimento da doença. É possível que a prevenção ou redução desta dislipidemia seja possível em breve, reduzindo assim a incidência da estenose aórtica.

Outros mecanismos potenciais que podem estar envolvidos no desenvolvimento e progressão da estenose aórtica como danos ao endotélio, inflamação sistêmica, liberação de citocinas e a microcalcificação intracelular.

Em um editorial recente, o prof. Brauwald diz ter sido emocionante ter um assento ao lado do ringue observando os avanços na incidência, na avaliação e manejo da estenose aórtica desde a época em toda essa jornada começou. Agora imagina o quão estimulante para essas mentes e para as nossas será entender o que vai ser possível no futuro…

Literatura Sugerida: 

1 – Braunwald E. Aortic Stenosis: A 6-Decade Odyssey. J Am Coll Cardiol. 2023 Nov 28;82(22):2110-2112. doi: 10.1016/j.jacc.2023.10.001.

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