Existe mesmo diferença?
Não restam dúvidas que diferenças existam entre os sexos, além das cromossômicas, determinadas doenças que se manifestam de maneiras distintas, com penetrância diferentes, taxas de incidência e mortalidade. As doenças cardiovasculares estão entre as entidades que têm acometimento variado entre homens e mulheres, desde o padrão de acometimento das coronárias ao resultado final da cirurgia de revascularização, hipertensão arterial, hipertensão pulmonar e insuficiência cardíaca também incluem esse rol. Atualmente com a evolução no diagnóstico e tratamento das diversas doenças cardiovasculares muitos dessses questionamentos foram solucionadas, e a bola da vez é o entendimento das doenças valvares onde existem lacunas a serem preechidas.
Inúmeras diferenças baseadas no sexo são observadas em todo o espectro da doença valvar cardíaca, começando com a fisiopatologia e progressão da doença, passando para compensações e comorbidades (tanto cardiovasculares como doença arterial e não cardiovascular, como fragilidade), avaliação da gravidade e hemodinâmica, incluindo o tempo de intervenção e riscos/benefícios e resultados do procedimento.
A valva aórtica talvez seja melhor compreendida com as diferenças sexuais tanto nas alterações patológicas quanto na resposta à sobrecarga de volume e pressão, mas ainda existem grandes lacunas em nossa compreensão. Estudos de outras doenças valvares têm se concentrado nas diferenças de prevalência, apresentação e resultados para cirurgias ou terapias transcateter. A definição de respostas específicas do sexo à doença cardíaca valvar pode melhorar o reconhecimento da doença, definir estratégias de tratamento e melhorar os resultados.
Em um artigo publicado recentemento por Rebeca Hahn e colaborados no JACC, são abordados algumas dessas diferenças entre os sexos na apresentação e manejo da doença, além dos gaps e necessidade de pesquisas futuras para melhor entendimento dos casos.
Um dos primeiros pontos abordados foi sobre endocardite infecciosa, os homens predominam na maioria das séries de casos de endocardite infecciosa com uma relação de que varia de 3:2 a 9:1; no entanto, os resultados parecem ser piores em mulheres possivelmente relacionadas à subutilização de cirurgia valvar. Nesse mesmo estudo na análise multivariada, a mortalidade hospitalar não foi significativamente diferente entre os sexos; no entanto, a mortalidade por todas as causas foi significativamente maior em mulheres também (31,3% vs 16,8%, P = 0,018). As razões para as diferenças sexuais na endocardite são desconhecidas e merecem mais estudos.
A segunda doença abordada no artigo foi a doença valvar aórtica, uma vez que figura entre as principais valvopatias nos países desenvolvidos com uma proporção maior de estenose do que regurgitação, atingindo até 12,4% dos idosos principalemnte homens.
A doença valvar aórtica estenótica tem uma fisiopatologia baseada na calcificação dos folhetos, com mulheres apresentando menos cálcio para o mesmo grau de estenose. As mulheres apresentam mais fibrose valvar e tecido conjuntivo mais denso para uma mesma gravidade da estenose hemodinâmica se comparado aos homens.
Observam-se diferenças no pasdrão de remodelamento concêntrico que podem ter correlação com o grau de fibrose e interações hormonais. Essas diferenças por sexo na estenose aórtica são provavelmente explicadas por diferenças na iniciação e progressão fisiopatológica, que infelizmente estão longe de serem elucidados. Outro dado importante é que as mulheres tiveram maior mortalidade no longo prazo (HR 1,91) para o mesmo grau de doença.
Quando falamos da regurgitação aórtica as etiologias principais incluem valva bicúspide, degeneração mixomatosa, dilatação da aorta e síndromes inflamatórias. A dilatação da aorta na valva aórtica bicúspide é observada mais freqüentemente em homens; no entanto, isso não parece afetar negativamente os resultados. No entanto, as mulheres exibiram um risco relativo de morte significativamente maior nos centros de referência terciários (40% maior), que foi independentemente associado à regurgitação aórtica em mulheres. Isso pode estar relacionado aos pontos de corte do diâmetro sistólico final para intervenção, o que pode favorecer o encaminhamento precoce para os homens em comparação com mulheres.
Um estudo recente de regurgitação aórtica crônica moderada a grave mostrou aumento da mortalidade com menor dimensão sistólica final do ventrículo esquerdo com índices de 20 a 25 mm/m² (HR: 1,53; IC 95%: 1,01-2,31); entretanto, 82% dos pacientes neste estudo eram homens, novamente levantando questões importantes sobre a definição dos pontos de corte apropriados baseados no sexo para intervenção.
Ainda neste artigo quando analisamos os dados sobre insuficiência mitral percebemos que é uma doença associada a alta morbidade e mortalidade. A grande maioria dos pacientes tanto com doença primária quanto secundária permanece sem tratamento, com maior proporção de mulheres entre os pacientes não tratados.
Ao avaliarmos a insuficiência mitral primária, a causa mais comum nos EUA e Europa é o prolapso da valva mitral com uma tendência para o sexo feminino. Em uma análise retrospectiva de 8000 pacientes observou-se diferença entre os diâmetros atriais e ventroculares indexados de homens e mulheres, demosntrando uma necessidade de critérios sexo-dependentes para internvenção. Além existem alguns padrões genéticos com maior risco de morte súbita na doença arritmogênica do prolapso relacionados ao sexo feminino ainda pouco esclarecidos.
Quando vamos para insuficiência mitral secundária observamos uma predileção pelo sexo masculino, uma vez que a doença está relacionada ao remodelamento ventricular e graus variados de disfunção. Entre 28.820 participantes de 4 coortes baseadas na comunidade seguidas por incidência de insuficiência cardíaca ao longo de doze anos, os homens tiveram quase duas vezes mais risco do que as mulheres para IC com fração de ejeção reduzida. Assim, não é de estranhar que as mulheres representaram apenas 36% dos pacientes no COAPT e 25% dos pacientes no MITRA-FR.
Nesse contexto podemos observar que existem sim muitas diferenças entre os sexos, algumas já elucidadas e muitas ainda por resolver. A fim de que esse entendimento traga luz as discussões sobre as melhores estrtégias de abordagem nas doenças valvares, desde o diagnóstico, e tempo ideal de abordagem que podem ser diferentes para cada sexo como começamos a perceber.
Seguem alguns apontamentos:
Literatura Sugerida:
1- Rebecca T. Hahn, Marie-Annick Clavel, MD, Julia Mascherbauer, Stephanie L. Mick, Anita W. Asgar, Pamela S. Douglas. Sex-Related Factors in Valvular Heart Disease. JACC: VOL. 79, NO. 15, 2022
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