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Valvopatias e gênero

João ou Maria: faz diferença na prática?

A importância de entender o perfil do paciente com valvopatias tem se mostrado fundamental para uma melhor compreensão da fisiopatologia e progressão da doença, bem como a avaliação de gravidade e intervenção apropriada. Apesar da forte tendência de nos atermos apenas às variáveis morfológicas e funcionais clássicas, a simples observação de qual o sexo do paciente pode ser suficiente para especular hipóteses e dar o ponta-pé inicial no raciocínio clínico.

As peculiaridades dos sexos feminino e masculino já são um aspecto amplamente discutido em outras doenças cardiovasculares, como a doença arterial coronariana e a insuficiência cardíaca.

Todavia, nas doenças valvares a diferença entre os sexos permanece sendo subestimada e mal compreendida, podendo causar atraso na tomada de decisão e na definição de estratégias terapêuticas

A valva aórtica talvez seja melhor compreendida, com o espectro de diferenças entre os sexos se iniciando a nível histológico. Nesse contexto, o sexo masculino parece aprensentar uma maior tendência a calcificação de estruturas, em relação ao sexo oposto.

Ainda que as mulheres apresentem uma calcificação valvar menor e com progressão mais lenta, em estenoses aórticas hemodinamicamente semelhantes, o sexo feminino apresenta um maior grau de fibrose e densidade de tecido conjuntivo, tanto nos folhetos valvares quanto no miocárdio ventricular subjacente.

Esta é, possivelmente, uma das explicações para a maior prevalência de remodelamento ventricular concêntrico neste grupo quando comparada aos homens, que apresentam maior tendência ao remodelamento excêntrico.

No caso das lesões regurgitantes, ainda que não pareça ser um preditor de complicações, os homens apresentam maior prevalência de dilatação aórtica em casos de válvulas bicúspides. Mesmo assim, as mulheres apresentam taxa de mortalidade drasticamente maior em serviços terciários quando comparadas ao sexo oposto.

Como fator causal, podemos recorrer ao entendimento da resposta ventricular à sobrecargas de volume, que parece se comportar de maneira peculiar nas mulheres. Temos dados na literatura evidenciando que, no grupo feminino, os diâmetros ventriculares podem não se correlacionar diretamente com o grau de regurgitação, tendendo a serem menores mesmo com frações regurgitantes significativas.

Dessa forma, levando-se em conta que um dos critérios incluídos na avaliação de intervenção é justamente a dinâmica ventricular, possivelmente pacientes do sexo feminino são abordadas de forma tardia, o que justificaria uma maior gravidade observada na admissão e evolução clínica.

Essa tendência se faz presente também na insuficiência mitral, com estudos retrospectivos sugerindo que a média dos diâmetros das câmaras esquerdas, quando indexados para superfície corporal, é maior no grupo feminino. Nesse contexto, tem-se ainda dados consensuais de que a população feminina se apresenta mais sintomática, com mais comorbidades e idade superior no momento da intervenção, o que reforça a ideia de retardo na abordagem e necessidade de criação de critérios indexados específicos.

Ainda, mulheres em estágios de doença semelhante aos homens, apresentam mais disfunção ventricular subclínica, evidenciado no rastreamento por ecocardiografia com strain, sendo que o uso desta modalidade pode permitir maior detecção da progressão da doença e encaminhamento adequado à intervenção.

Vale destacar que, como amplamente observado na prática clínica, a estenose mitral reumática é notadamente mais prevalente no sexo feminino e frequentemente em pacientes jovens, trazendo consigo preocupações adicionais quanto à intervenção, desempenho hemodinâmico, durabilidade de próteses e manejo anticoagulante.

Na insuficiência tricúspide as mulheres ultrapassam os homens em prevalência na 8° década de vida, e mesmo que não haja diferença quanto a mortalidade entre os sexos nas cirurgias isoladas da valva tricúspide, as mulheres assumem o primeiro lugar no número de cirurgias.

Quanto à endocardite infecciosa, os homens predominam, com maior predisposição a terem o lado direito acometido e maior incidência de infecção por estafilococos coagulase negativa. Ainda assim, a mortalidade feminina em todas as causas de endocardite se mostra maior, sendo os resultados relatados piores, possivelmente relacionados à preferência pelo tratamento clínico.

A cardiopatia valvar se manifesta e deve ser abordada de maneira diferente entre homens e mulheres. Provavelmente, as diferenças na história natural da doença de acordo com o sexo são decorrentes de mecanismos fisiopatológicos ainda pouco conhecidos, como as diferentes formas de resposta à sobrecargas de volume e pressão, e a ainda quase inexplorada influência de hormônios sexuais. Assim, é nítida a necessidade de novos estudos, tanto para um melhor entendimento da fisiopatologia quanto para uma tomada de decisão mais consistente.

Literatura Sugerida: 

1 – Hahn RT, Clavel MA, Mascherbauer J, Mick SL, Asgar AW, Douglas PS. Sex-Related Factors in Valvular Heart Disease: JACC Focus Seminar 5/7. J Am Coll Cardiol. 2022 Apr 19;79(15):1506-1518.

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