Impacto e Arritmias
As valvopatias predispõem à ocorrência de taquiarritmias supraventriculares uma vez que estenoses e/ou regurgitações valvares importantes produzem efeitos hemodinâmicos nos átrios que promovem o remodelamento estrutural e elétrico. Com a evolução natural da patologia valvar, a sobrecarga pressórica e/ou volumétrica causadas pela alteração morfofuncional conduz a um processo de estiramento mecânico crônico dos cardiomiócitos da parede atrial. Adicionalmente, ocorre a síntese de material fibrótico intersticial, alterando a capacidade de acoplamento e funcionalidade dos miócitos, de modo que a condução elétrica nos átrios fica comprometida.
Sendo assim, as áreas onde a propagação do estímulo elétrico fica lentificada e/ou descontínua podem atuar como substrato para o surgimento de taquiarritmias, como a fibrilação atrial (FA), por exemplo. A incidência de FA é significativamente maior em pacientes com valvopatia mitral (26-54%) e aórtica (10-13%), quando comparadas à população geral.
Frente ao exposto, van der Does e cols. conduziram um estudo visando, como objetivo primário, identificar diferenças na prevalência e distribuição de distúrbios de condução atriais durante o ritmo sinusal em pacientes com doença valvar mitral e aórtica com necessidade de tratamento cirúrgico e, como desfecho secundário, determinar a associação entre a localização desses distúrbios e o desenvolvimento de FA clinicamente manifesta. Para isso, lançou mão de mapeamento epicárdico de alta resolução para localizar áreas com condução anormal.
A amostra do estudo foi composta de 139 pacientes maiores que 18 anos, predominantemente do gênero masculino (64%), com mediana de idade de 70 anos (Intervalo Interquartílico de 62-75 anos), submetidos à cirurgia valvar isolada ou combinada com revascularização miocárdica (39% – mitral e 61% – aórtica). Realizou-se o mapeamento de alta resolução da superfície epicárdica atrial direita, esquerda e do feixe de Bachmann e, à partir da gravação do eletrograma em ritmo sinusal com duração de 5 segundos e dos mapas de ativação, estudou-se a prevalência de atrasos e/ou bloqueios de condução nesses sítios.
Com relação às características clínicas iniciais dos pacientes, 47% apresentavam coronariopatia significativa e 27% história pregressa de FA. Àqueles com valvopatia mitral apresentavam maior prevalência de aumento do átrio esquerdo, disfunção ventricular esquerda e FA clinicamente manifesta previamente à cirurgia; em contrapartida, hipertensão foi significativamente mais prevalente no grupo com patologia aórtica.
Certo grau de atraso e bloqueio de condução foi verificado em virtualmente todos os pacientes em ritmo sinusal e a prevalência variou, respectivamente, entre 0,17-3,4% (mediana de 1,26%) e 0-3,58% (mediana 1,15%) da superfície atrial. Não houve diferença na taxa de distúrbios da condução atrial entre pacientes com doença mitral quando comparados à valvopatia aórtica.
Os indivíduos que apresentaram FA no período perioperatório possuíam idade média mais elevada e átrios com maiores dimensões. O parâmetro com maior associação com a presença da arritmia antes da cirurgia foi distúrbio da condução pelo feixe de Bachmann, com moderada força de correlação.
No tangente ao pós-operatório, verificou-se uma incidência de FA em 52% dos pacientes e apenas a idade se associou com esse desfecho. As demais variáveis analisadas (distúrbios de condução, FA pré-operatória, aumento atrial, disfunção ventricular, diabetes e hipertensão) não se mostraram preditores do desenvolvimento de FA após o procedimento cirúrgico.
O estudo também evidenciou maior incidência de FA em portadores de valvopatia mitral, sugerindo acentuado grau de remodelamento atrial nesses pacientes. Tal achado corrobora o reportado por outras publicações, que demonstraram maior atraso da condução do estímulo elétrico na parede posterior do átrio esquerdo em portadores de doença mitral em comparação à aórtica.
Todavia, tal diferença nem sempre esteve presente em ritmo sinusal nesse último, o que vai de encontro ao relatado por van der Does e cols., que ao mapear a superfície atrial, verificaram atrasos de condução significativos especialmente na parede posterior e lateral do átrio esquerdo, mesmo em ritmo sinusal, nos portadores de valvopatia mitral, os quais se associaram à presença de FA.
Esse estudo foi pioneiro em descrever distúrbios de condução na superfície atrial em pacientes com valvopatia com necessidade de abordagem cirúrgica, mesmo em ritmo sinusal, e demonstrou que a sobrecarga atrial na doença valvar mitral predispõe a remodelamento elétrico e distúrbios na condução elétrica, especialmente na superfície póstero-lateral do átrio esquerdo. Adicionalmente, evidenciou maior acometimento do feixe de Bachmann em pacientes portadores de valvopatia mitral e aórtica e tal achado se associou com FA.
Tais descobertas auxiliam no entendimento das alterações estruturais causadas associadas à doença valvar, que interferem na propagação do estímulo pelo sistema excito-condutor e promovem substrato para o desenvolvimento de taquiarritmias, sobremaneira a FA.
Literatura Sugerida: van der Does LJME, Lanters EAH, Teuwen CP, Mouws EMJP, Yaksh A, Knops P, et al. The Effects of Valvular Heart Disease on Atrial Conduction During Sinus Rhythm. J Cardiovasc Transl Res. 2020 Aug;13(4):632–9.
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